Thursday 12 October 2023

A complexa relação entre cristãos e Israel

[Artigo escrito originalmente em 2012, actualizado em 2023]

Este tema dava para um livro, ou vários, e por isso vou ser o mais sintético possível. O meu objectivo é elaborar aqui um ‘mini guia’ para os leigos compreenderem alguns dos aspectos mais relevantes de uma relação complexa.

Embora o Estado moderno de Israel só exista há 75 anos, as relações entre este e as diferentes igrejas cristãs são influenciadas por muitos aspectos que antecedem a fundação do país. A isso deve-se somar a existência de diferentes igrejas cristãs, cada uma com os seus interesses estratégicos, o que neste contexto não significa necessariamente “interesseiros”.

Comecemos pelos “melhores amigos” de Israel. Ao contrário do que se possa esperar, nem sempre os melhores amigos de Israel são os judeus noutros países - muitos dos quais são até bastante críticos do Estado Israelita, mas sim cristãos evangélicos. Isto é particularmente verdade nos Estados Unidos, onde estes cristãos têm maior expressão, influência e força, mas não é uma realidade confinada à América.

Os evangélicos americanos acabam por reflectir a posição genérica das diferentes administrações em Washington, mas por razões mais complexas. Em alguns casos pelo menos, não digo que seja em todos, está em causa uma visão milenarista que defende que a existência de Israel enquanto Estado político independente é uma pré-condição necessária para o fim dos tempos, a segunda vinda de Cristo e o Juízo Final.

Claro que muitos desses cristãos acreditam que os judeus que agora tanto defendem serão condenados ao inferno por não terem acolhido a salvação que vem de Cristo, por isso é uma amizade um tanto ou quanto estranha. Mas é palpável e não apenas moral, assumindo a forma de ajuda financeira e política.

A situação muda de figura com as igrejas evangélicas mais liberais/progressistas, que tendem a apoiar mais a causa palestiniana, mas estas são menos expressivas, porque menos organizadas.

Na Europa, por exemplo, a situação é bastante diferente. Em alguns países mantém-se uma lamentável desconfiança dos judeus que se traduz em atitudes anti-Israelitas. Outras pessoas simplesmente não concordam com as políticas daquele Estado face aos palestinianos, o que não deve ser necessariamente confundido com antissemitismo. Isto aplica-se tanto a cristãos como a não-cristãos, mas nos últimos tempos tem-se tornado particularmente a bandeira de uma certa esquerda radical, que é também anticristã, e por conseguinte tem empurrado alguns cristãos para o lado contrário.

Protesto anti-israelita na Grécia
No plano oficial, porém, a atitude dos cristãos na Europa, sobretudo da hierarquia católica, rege-se pela linha orientadora do Vaticano que tem defendido consistentemente o direito à existência de Israel, aliado a uma defesa dos direitos dos palestinianos, o que se traduz na defesa da solução de dois estados para aquela região.

Os interesses do Vaticano na Terra Santa são representados pelo Patriarcado Latino de Jerusalém, cujo Patriarca, Pierbattista Pizzaballa, foi recentemente elevado a cardeal. Quando recebeu do Papa os símbolos cardinalícios, este disse-lhe "força, coragem!", mostrando entender a delicadeza da sua posição, de ter de cuidar de cristãos de ambos os lados da barricada e de lidar com as autoridades árabes e judaicas.

Do ponto de vista geopolítico e ideológico isto até poderá parecer estranho. Nos dias de hoje, não têm os judeus mais em comum com os cristãos face à ameaça comum que representa um Islão em expansão? Talvez. Note-se que a nível de diálogo inter-religioso, por exemplo, o Judaísmo é tratado de forma diferente do que o Islão, em reconhecimento dessa maior proximidade.

Contudo, e aqui chegamos ao aspecto mais importante, há que recordar o factor dos cristãos árabes. Uma boa percentagem da população palestiniana é cristã, tanto no território da Administração Palestiniana (mais na Cisjordânia do que em Gaza, mas a diminuir em ambos), como em Israel propriamente dito, onde são cerca de 10% da população palestiniana.

Tradicionalmente estes cristãos palestinianos eram tão ferozmente anti-israelitas como os seus compatriotas árabes. George Habash e Nayef Hawatmeh, por exemplo, dois dos pioneiros da luta armada contra Israel, eram ambos cristãos e aquele que foi talvez o único exemplo de um bispo detido por tráfico de armas foi o palestiniano Hilarion Capucci.

George Habash, cristão e pioneiro da luta armada palestiniana
Esta tendência alarga-se ao resto do mundo árabe. Geralmente os cristãos árabes são anti-israelitas e culpam o conflito israelo-árabe pela instabilidade da zona, que acaba por desembocar em perseguições anticristãs.

Compreende-se por isso que a Igreja Católica, uma vez que muitos destes cristãos árabes são católicos, tenha que manter um, por vezes difícil, equilíbrio entre uma maior proximidade ideológica com os israelitas democráticos e ocidentalizados - sobretudo reconhecendo uma dívida para com o povo judaico, fruto de séculos de perseguição - e a defesa de alguns direitos elementares de justiça e dignidade para os palestinianos, muitos dos quais são cristãos. Nem sempre é um jogo fácil de jogar e as relações diplomáticas entre a Santa Sé e Israel são tensas. Ainda recentemente, quando começou este novo conflito em Outubro de 2023, o Governo israelita criticou o Papa por apelar à paz e à contenção de ambas as partes, acusando-o de falsos paralelismos.

Por fim, temos o factor ortodoxo. Aqui sente-se de forma particular o peso da história. Recordemos que até à Primeira Guerra Mundial toda a Terra Santa pertencia ao Império Otomano, a grande potência do mundo islâmico.

Havia cristãos em vários territórios do Império Otomano, que viviam com uma boa dose de liberdade, incluindo na Terra Santa. O Patriarcado de Constantinopla tinha a sua sede precisamente na capital deste mesmo Império.

Clérigos ortodoxos gregos em Jerusalém
Aos olhos dos Otomanos, os cristãos ortodoxos, fiéis ou a Constantinopla ou a Moscovo, mas não a Roma, eram de maior confiança que os católicos, que mais facilmente podiam ser encarados como “agentes” dos países ocidentais. Os ortodoxos ganharam bastante com isso. O Patriarcado Ortodoxo Grego de Jerusalém é ainda hoje o maior detentor de terras em Israel, possuindo por exemplo o terreno no qual está construído o Knesset, o parlamento israelita.

Ao mesmo tempo os Russos investiram muito dinheiro em Jerusalém, construindo inúmeros mosteiros, albergues para os seus peregrinos e outras instituições, estabelecendo uma significativa presença na Terra Santa.

As boas relações que os ortodoxos tinham com o Império Otomano chegaram ao fim com a guerra e não são as mesmas com o Estado de Israel. Por um lado, os ortodoxos e os judeus têm obrigatoriamente que se entender, mas da parte dos ortodoxos não existem as mesmas atenuantes que há em Roma para moderar a desconfiança ou mesmo ódio que os fiéis árabes sentem pelo Estado Judaico.

Quem são os cristãos na Terra Santa?

Normalmente olhamos para a Terra Santa, e para o conflito entre Israel e a Palestina, como uma dicotomia judaica-muçulmana, mas são muitos os cristãos que vivem nestes territórios. 

Os mais numerosos são os cristãos árabes, identificados hoje em dia como palestinianos. Neste momento estes constituem cerca de 3% da população na Faixa de Gaza e da Cisjordânia, embora historicamente tenham sido uma percentagem muito maior, que foi diminuindo pelo facto de os cristãos emigrarem em muito maior proporção que os muçulmanos. 

Entre a comunidade árabe/palestiniana que vive em Israel a percentagem de cristãos é significativamente maior, cerca de 7%, o que representa a vasta maioria dos cristãos israelitas (75%). Os cristãos palestinianos dividem-se mais ou menos em igual número entre católicos e ortodoxos, sendo que existem católicos de rito latino e de rito oriental, principalmente melquita. 
Judeus messiânicos

Os restantes cristãos em Israel são de diferentes comunidades, incluindo entre três e seis mil arménios. Há um número muito significativo de russos de ascendência judaica que emigraram para Israel mas cujas famílias tinham entretanto convertido ao cristianismo, pelo que existem dezenas de milhares de fiéis da Igreja Ortodoxa Russa no país. O mesmo se aplica a alguns milhares de membros da comunidade etiope em Israel. 

Existe também uma relativamente pequena, mas significativa comunidade de cristãos de língua hebraica. Integrada na Igreja Católica de rito latino, esta comunidade é composta por judeus convertidos ao Cristianismo, mas também por descendentes de católicos que já nasceram em Israel e para quem o hebraico é a língua materna.

Por fim, existem algumas comunidades protestantes, a mais polémica das quais são os chamados "judeus messiânicos", que são judeus que acreditam que Jesus é o Messias prometido a Israel e que são por isso cristãos, mas continuam a vestir-se e a comportar-se como judeus, procurando muito activamente converter outros judeus à sua fé. Por causa do seu proselitismo, são muito mal vistos por judeus devotos em Israel. Segundo alguns dados, existem mais de cinco mil judeus messiânicos em Israel.

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