Monday 18 May 2015

Cientistas não ligam à “incompatibilidade” entre ciência e religião

Jesuítas com instrumentos científicos
Transcrição integral da entrevista a Francisco Malta Romeiras, a propósito do seu livro “Ciência, Prestígio e Devoção: Os Jesuítas e a Ciência em Portugal (séculos XIX e XX)”. A reportagem pode ser lida aqui.


De que trata o livro?
O meu livro trata das investigações científicas que os jesuítas fizeram no século XIX e no século XX em Portugal.

Trata dos colégios que fundaram, o colégio de Campolide e o Colégio de São Fiel e, numa segunda parte, da revista Brotéria.

Ao longo da história temos visto os jesuítas a serem perseguidos de forma particular. Há alturas em que todas as ordens religiosas são expulsas, mas parece haver pelos jesuítas um ódio especial... Porquê?
Os jesuítas foram expulsos de Portugal três vezes. A primeira foi pelo Marquês de Pombal em 1759 e, no século XIX, foram expulsos antes de todas as outras ordens religiosas. O que acontece é que a Companhia de Jesus era uma instituição muito poderosa em Portugal e na Europa. Por isso criou uma animosidade maior, também em Portugal e na Europa. Os jesuítas dominavam a rede de ensino em Portugal, na Europa e na Ásia. Eles são muito contestados porque são acusados de serem contra a ciência e contra a educação, o que mais tarde se veio a provar não ser verdade.

Mas por serem uma ordem tão poderosa e com tantos interesses, acontece que depois chocava com os interesses do Marquês de Pombal, em Portugal, daí terem sido a primeira ordem a ser expulsa.

Repare-se que só em 1834, quase cem anos depois, é que as ordens religiosas são expulsas por D. Pedro IV. Há aqui uma grande distância que tem a ver com o facto de a Companhia de Jesus não ser uma ordem normal. É uma ordem muito dedicada à educação, muito dedicada à ciência, à missionação e que por isso se revestia de características muito particulares quando comparada com as outras ordens.

Não deixa de ser um paradoxo... Foram expulsos por serem contra a ciência e a educação, quando trabalhavam precisamente na ciência e na educação, mais do que as outras.
Exacto, é completamente paradoxal. E o que acontece, ou tem acontecido até agora, é que os historiadores que olhavam para a história da Companhia, olhavam sobretudo do ponto de vista dos documentos que o Marquês de Pombal produziu. E esses documentos, cheios de retórica, acusavam-nos disso mesmo, de serem obscurantistas, de perseguirem as ideias científicas e filosóficas, e o que se veio a ver, olhando para os documentos produzidos, é que isso não era nada realidade.

Agora, com este livro e com estas investigações, percebe-se que a história afinal é outra, é mais interessante.

Faz parte da sua tese que o anti-jesuitismo foi uma das coisas que depois fez os jesuítas apostar mais nas áreas da investigação científica, talvez para provar precisamente o contrário...
Exacto.

O que acontece é que estão cem anos fora de Portugal, mais ou menos, tirando um breve regresso no reinado de D. Miguel. E quando regressam, em meados do século XIX, a tese pombalina é muito forte, por isso sentem-se na necessidade de combater essa tese. E como se sentem nessa necessidade, o que vão fazer é, nos seus colégios, investir imenso nas ciências naturais. Vão fazer laboratórios, criar colecções científicas, promover expedições com os alunos, por exemplo para ver eclipses. Por exemplo, o Colégio de Campolide é o primeiro lugar em Portugal onde se fazem experiências com radioactividade. Foi um padre jesuíta que foi trabalhar com Marie Curie por volta de 1910 e depois vem para Portugal e trabalha pela primeira vez com radioactividade. Isto acontece sobretudo por causa deste anti-jesuitismo do século XIX, que é pouco original, porque retoma muitas das teses do século XVIII e eles sentem necessidade de combater essas teses.

Francisco Malta Romeiras
Não é algo que se passa só em Portugal, pois não?
Portugal é um caso muito particular. Primeiro porque é o primeiro sítio de onde eles são de facto expulsos. O Marquês de Pombal é o primeiro grande estadista europeu a expulsar os jesuítas. Depois os outros países vão seguir as pegadas de Pombal e isto leva inclusivamente a que a ordem seja extinta em 1773, pelo Papa Clemente XIV. Portanto Portugal é o primeiro sítio e é o sítio mais grave, o sítio onde se produz a maior campanha.

José Eduardo Franco, um grande historiador da companhia no século XVIII e que estudou muito o mito jesuíta e anti-jesuíta, diz que esta foi a maior campanha publicitária de sempre. Por exemplo, a Dedução Cronológica e Analítica, que é o livro mais importante publicado por Pombal, foi traduzido para chinês, para que pudesse chegar a todo o mundo e toda a gente pudesse saber as acusações que tinha contra os jesuítas.

Nos outros países em que a Companhia foi sendo restaurada não há tanto esta necessidade de contrariar o obscurantismo, porque as acusações foram mais fracas, foram sobretudo políticas, económicas e sociais, enquanto que em Portugal a tese científica foi muito importante.

Pode descrever, resumidamente, a importância que os jesuítas tiveram para a investigação científica, sobretudo em Portugal, e em que áreas é que trabalhavam?
Nos séculos XIX e XX os jesuítas em Portugal voltaram-se muito para a botânica e para a zoologia, e começaram nestas áreas porque eram áreas que facilitavam o trabalho de amadores. Isto é, eles que não tinham formação universitária quando começaram, podiam facilmente recolher espécimes de animais e plantas e depois identificá-los.

O que é extraordinário é que eles passaram rapidamente de amadores a profissionais e passaram a contactar com os maiores profissionais da Europa e dos Estados Unidos. Essas foram as primeiras áreas.

Mais tarde, dedicaram-se à bioquímica e à genética e melhoramento de plantas, e trabalharam muito com os laboratórios de Estado que foram fundados na altura do Estado Novo, como por exemplo a Estação Agronómica Nacional e a seguir um dos contributos mais relevantes foi a introdução da Genética Molecular em Portugal, pelo padre Luís Archer, que foi o primeiro doutorado em Genética Molecular, doutorou-se nos Estados Unidos, que veio para Portugal e introduziu esta disciplina importantíssima para a investigação em Biologia, nos anos 60 do século XX.

Por isso começando pela botânica e zoologia, passando pela bioquímica e acabando na genética molecular, os jesuítas foram importantíssimos para a ciência em Portugal no Século XX.

Essa tendência mantém-se actualmente?
Ultimamente é mais raro, desde que acabou a Brotéria Genética, que foi dirigida pelo padre Luís Archer em 2002, não há tantos jesuítas a formarem-se em ciência. Penso que há um ou dois que estão a fazer o doutoramento em física, mas não tem acontecido.

O que é peculiar na Companhia de Jesus é que esta ordem religiosa incentiva sempre os seus membros a prosseguirem os seus estudos e a fazer doutoramentos. Não necessariamente em ciência, pode ser em filosofia, em teologia, há jesuítas que fazem em arquitectura, ou até em ciência política, o que é peculiar é isto, de serem sempre incentivados a estudar mais.

No caso português e no caso do regresso no século XIX a ciência era obviamente uma aposta importante. Quando estão mais instalados, como aconteceu, já cá estão desde 1930, quando regressaram depois de expulsos pela Primeira República, já não é tão importante a ciência.

A sua própria área de formação é científica...
Comecei a estudar bioquímica e agora fiz o doutoramento em história e filosofia das ciências.

Tendo em conta a sua própria formação e os estudos que tem estado a fazer, aquela ideia de que a ciência e a religião estão em campos opostos, faz algum sentido?
Essa tese foi muito popularizada no século XIX por White e Draper e o que acontece é que chegou ao domínio popular as pessoas pensarem que se trata de uma coisa real. O que se vê nos cientistas jesuítas é que não existe esta incompatibilidade, nem sequer esse assunto aparece nos seus trabalhos. As pessoas falam na tese incompatibilista, se há ou não uma conciliação entre as duas áreas, e o que acontece na realidade é que os cientistas não ligam a esta incompatibilidade inventada no século XIX. O caso mais conhecido, de que se fala mais é o de Galileu, no século XVII, e que é apresentado como paradigmático, quando pelo contrário foi apenas um caso raro e que não é representativo do que aconteceu ao longo da história da Igreja e da humanidade.

Esse mito da ciência e da fé como incompatíveis é um mito que hoje em dia os historiadores da ciência não acreditam. Por exemplo, um dos grandes historiadores da ciência americano, que é o John Heilbron diz que a Companhia de Jesus foi a maior instituição que promoveu a Física no Século XVII. Ele diz que é a Igreja Católica e dentro da Igreja Católica, a Companhia de Jesus. Há imensos historiadores da ciência ateus, como por exemplo o Ronald Numbers, que escreveu um livro sobre Galileu e os mitos da história da Ciência, voltam a veicular esta ideia de que não há qualquer incompatibilidade entre fé e ciência. No entanto os escritos do século XIX e o Positivismo fizeram aumentar a consciência desta tese junto das pessoas. Por isso, apesar de no meio académico estar resolvida esta questão, nos meios menos académicos as coisas não são assim são simples.

Aliás, há uma série figuras ligadas a grandes descobertas ou teorias científicas que são não só crentes como clérigos. Estou a pensar em Lemaitre, da Teoria do Big Bang.
Basta pensar em Copernico, ou Mendel, que descobriu os factores da hereditariedade, que era monge.

Mesmo a história de Galileu é muitas vezes mal contada, não é? Ele não foi queimado nem morreu fora da Igreja...
Morreu velho em sua casa, em prisão domiciliária. Nunca foi excomungado nem abandonou a Igreja.

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