Wednesday 3 August 2016

Compreender o Desapego

Russell Shaw
O desapego é um tema central para o Cristianismo desde o seu início. Recordemos a história do homem rico, encontrado em todos os Evangelhos sinópticos, que pergunta a Jesus o que deve fazer para ser melhor. Jesus responde: “Vai e vende todos os teus bens e dá aos pobres. Depois vem e segue-me”. O jovem afasta-se, triste, porque, diz-nos o evangelista, “tinha muitos bens” (Mt. 19, 21-22). Faltava-lhe o desapego – precisava de se desprender de algo grande, mas não conseguia fazê-lo.

O desapego tem uma importância crucial, não só para jovens ricos, mas para todos os que querem imitar Cristo e viver segundo os seus ensinamentos. Mas do que é que estamos a falar, exactamente? E porque é que é tão importante não só para quem tem “muitos bens” mas também para aqueles cujos bens são mais modestos? Deixem-me propor uma definição que talvez ajude a chegar a uma resposta.

A definição é minha e não acarreta outra autoridade. Aceitem-na ou ignorem-na:

Ser-se desapegado – praticar o desapego – passa por estabelecer e manter uma relação com tudo e com todos na sua vida, de acordo com a qual todas as coisas são avaliadas consoante auxiliam ou dificultam a nossa relação com Deus, a imitação de Cristo e o serviço aos outros.

É uma boca cheia, admito. O que se segue talvez ajude a explicar o que significa.

No final da Idade Média os melhores pensadores consideravam que o desapego era contemptus mundi – desprezo pelo mundo. Encontra-se isto na sua forma mais pura em “A Imitação de Cristo”, um clássico da literatura espiritual (1419) que se costuma atribuir a Tomás Kempis, embora outros possam ter contribuído também. Prega uma mensagem de contemptus mundi a toda a linha, a começar pelo Livro Um, Capítulo Um:

A suprema sabedoria é esta: pelo desprezo do mundo tender ao reino dos céus.
Vaidade é, pois, buscar riquezas perecedoras e confiar nelas.
Vaidade é também ambicionar honras e desejar posição elevada.
Vaidade, seguir os apetites da carne e desejar aquilo pelo que, depois, serás gravemente castigado.
Vaidade, desejar longa vida e, entretanto, descuidar-se de que seja boa.
Vaidade, só atender à vida presente sem providenciar para a futura.
Vaidade, amar o que passa tão rapidamente, e não buscar, pressuroso, a felicidade que sempre dura.

E por aí fora.

A mensagem da “Imitação” é de uma sabedoria perene e tem sido crucial para a vida espiritual de incontáveis pessoas ao longo de seis séculos, e continua a sê-lo. Ainda assim, não há como negar que a sua visão do mundo contrasta, para não dizer que entra em conflito com, a visão expressa em “Amar o Mundo Apaixonadamente”, a famosa homilia de São Josemaria Escrivá, o fundador da Opus Dei.

“Deus vos chama a servi-Lo em e a partir das ocupações civis, materiais, seculares da vida humana: Deus espera-nos todos os dias no laboratório, no bloco operatório, no quartel, na cátedra universitária, na fábrica, na oficina, no campo, no lar e em todo o imenso panorama do trabalho. Ficai a saber: escondido nas situações mais comuns há um quê de santo, de divino, que toca a cada um de vós descobrir.”
 
"Pois tinha muitos bens" - Watts
Existe uma clara tensão entre isto e o contemptus mundi. Então o que devem fazer os cristãos que querem exercer o desapego? Encarar o mundo com desprezo, ou amá-lo apaixonadamente?

Esta tensão resolve-se, creio eu, num texto do Concílio Vaticano II que deu pouco nas vistas mas que é extremamente importante, “Gaudium et Spes”. Os teólogos não parecem saber muito bem o que fazer com o documento, mas no meu entender ele pode fazer uma enorme diferença para a maneira como os cristãos encaram a vida no mundo.

Os padres conciliares estão a discutir o sentido da actividade humana na perspectiva da fé. Recordando o ensinamento bíblico de que “a figura deste mundo, deformada pelo pecado, passa certamente, mas Deus ensina-nos que se prepara uma nova habitação e uma nova terra, na qual reina a justiça”. E continua dizendo que “a expectativa da nova terra não deve, porém, enfraquecer, mas antes activar a solicitude em ordem a desenvolver esta terra, onde cresce o corpo da nova família humana, que já consegue apresentar uma certa prefiguração do mundo futuro.”

“Todos estes valores da dignidade humana, da comunhão fraterna e da liberdade, fruto da natureza e do nosso trabalho, depois de os termos difundido na terra, no Espírito do Senhor e segundo o seu mandamento, voltaremos de novo a encontrá-los, mas então purificados de qualquer mancha, iluminados e transfigurados, quando Cristo entregar ao Pai o reino eterno e universal: ‘Reino de verdade e de vida, reino de santidade e de graça, reino de justiça, de amor e de paz’. Sobre a terra, o reino já está misteriosamente presente; quando o Senhor vier, atingirá a perfeição”. (GS 39)

Claramente isto significa que, pelo menos os bens humanos para os quais trabalhamos agora e que por vezes realizamos, embora de forma imperfeita, não desaparecerão na próxima vida. Há uma verdadeira continuidade. Os bens humanos estarão presentes no Céu, também, de forma perfeita e realizada. E embora a passagem não o diga, suspeito que o modelo que os padres conciliares tinham em mente é a humanidade ressuscitada de Cristo.

Aqui está, portanto, o ponto de partida e a fundação de um verdadeiro desapego, que valoriza as obras para a realização de bens humanos e os utiliza ao serviço de Deus e um do outro, sem lhes dar, na sua forma imperfeita, o valor permanente que apenas terão na sua forma perfeita no Reino dos Céus.

Amar o mundo apaixonadamente significa que podemos desapegar-nos dele graças à promessa da ressurreição e da vida eterna, confiantes de que encontraremos no Céu o melhor daquilo pelo qual trabalhámos na terra. É essa a essência do desapego.



Howard Kainz é professor emérito de Filosofia na Universidade de Marquette University. Os seus livros mais recentes incluem Natural Law: an Introduction and Reexamination (2004), The Philosophy of Human Nature (2008), e The Existence of God and the Faith-Instinct (2010)

(Publicado pela primeira vez em The Catholic Thing no Domingo, 31 de Julho de 2016)

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