Wednesday 17 May 2017

Fátima e Todo o Mundo Contemporâneo

João Paulo II
Em 1982 o Papa João Paulo II visitou o Santuário de Nossa Senhora de Fátima para comemorar o primeiro aniversário do atentado que sofreu e o 65º aniversário da primeira aparição. Fez esta homilia, aqui ligeiramente encurtada.

“E a partir daquele momento, o discípulo recebeu-A em sua casa” (Io. 19, 27)

Com estas palavras termina o Evangelho da Liturgia de hoje, aqui em Fátima. O nome do discípulo era João. Precisamente ele, João, filho de Zebedeu, apóstolo e evangelista, ouviu do alto da Cruz as palavras de Cristo: “Eis a tua Mãe”. Anteriormente, Jesus tinha dito à própria Mãe: “Senhora, eis o Teu filho”. Este foi um testamento maravilhoso.

Ao deixar este mundo, Cristo deu a Sua Mãe um homem que fosse para Ela como um filho: João. A Ela o confiou. E, em consequência desta doação e deste acto de entrega, Maria tornou-se mãe de João. A Mãe de Deus tornou-se Mãe do homem… Em João, todos e cada um dos homens d’Ela se tornaram filhos.

Uma manifestação particular da maternidade de Maria em relação aos homens são os lugares, em que Ela se encontra com eles; as casas onde Ela habita; casas onde se sente uma presença toda particular da Mãe.

Estes lugares e estas casas são numerosíssimos. E são de uma grande variedade: desde os oratórios nas habitações e dos nichos ao longo das estradas, onde sobressai luminosa a imagem da Santa Mãe de Deus, até às capelas e às igrejas construídas em Sua honra. Há porém, alguns lugares, nos quais os homens sentem particularmente viva a presença da Mãe. Não raro, estes locais irradiam amplamente a sua luz e atraem a si a gente de longe. O seu círculo de irradiação pode estender-se ao âmbito de uma diocese, a uma nação inteira, por vezes a vários países e até aos diversos continentes.

Em todos estes lugares realiza-se de maneira admirável aquele testamento singular do Senhor Crucificado: aí, o homem sente-se entregue e confiado a Maria e vem para estar com Ela, como se está com a própria Mãe. Abre-Lhe o seu coração e fala-Lhe de tudo: “recebe-A em sua casa”, dentro de todos os seus problemas, por vezes difíceis. Problemas próprios e de outrem. Problemas das famílias, das sociedades, das nações, da humanidade inteira.

Não sucede assim, porventura, no santuário de Lourdes na França? Não é igualmente assim, em Jasna Góra em terras polacas, no santuário do meu País, que este ano celebra o seu jubileu dos seiscentos anos?

Parece que também lá, como em tantos outros santuários marianos espalhados pelo mundo, com uma força de autenticidade particular, ressoam estas palavras da Liturgia do dia de hoje: “Tu és a honra do nosso povo” (Iudit. 15,10).

Estas palavras ressoam aqui em Fátima quase como eco particular das experiências vividas não só pela Nação portuguesa, mas também por tantas outras nações e povos que se encontram sobre a face da terra; ou melhor, elas são o eco das experiências de toda a humanidade contemporânea, de toda a família humana.

Venho hoje aqui, porque exactamente neste mesmo dia do mês, no ano passado, se dava, na Praça de São Pedro, em Roma, o atentado à vida do Papa, que misteriosamente coincidia com o aniversário da primeira aparição em Fátima, a qual se verificou a 13 de Maio de 1917.

Estas datas encontraram-se entre si de tal maneira, que me pareceu reconhecer nisso um chamamento especial para vir aqui. E eis que hoje aqui estou. Vim para agradecer à Divina Providência, neste lugar, que a Mãe de Deus parece ter escolhido de modo tão particular. “Misericordiae Domini, quia non sumus consumpti” – Foi graças ao Senhor que não fomos aniquilados (Lam. 3, 22).

Se a Igreja aceitou a mensagem de Fátima, é sobretudo porque esta mensagem contém uma verdade e um chamamento que, no seu conteúdo fundamental, são a verdade e o chamamento do próprio Evangelho.

“Convertei-vos (fazei penitência), e acreditai na Boa Nova (Mc. 1, 15): são estas as primeiras palavras do Messias dirigidas à humanidade. E a mensagem de Fátima, no seu núcleo fundamental, é o chamamento à conversão e à penitência, como no Evangelho. Este chamamento foi feito nos inícios do século vinte e, portanto, foi dirigido, de um modo particular a este mesmo século. A Senhora da mensagem parecia ler, com uma perspicácia especial, os “sinais dos tempos”, os sinais do nosso tempo.

O apelo à penitência é um apelo maternal; e, ao mesmo tempo, é enérgico e feito com decisão. A caridade que “se congratula com a verdade”(1Cor 13, 6) sabe ser clara e firme. O chamamento à penitência, como sempre anda unido ao chamamento à oração. Em conformidade com a tradição de muitos séculos, a Senhora da mensagem de Fátima indica o terço que bem se pode definir “a oração de Maria”: a oração na qual Ela se sente particularmente unida connosco. Ela própria reza connosco. Com esta oração do terço se abrangem os problemas da Igreja, da Sé de Pedro, os problemas do mundo inteiro. Além disto, recordam-se os pecadores, para que se convertam e se salvem, e as almas do Purgatório.

À luz do amor materno, nós compreendemos toda a mensagem de Nossa Senhora de Fátima. Aquilo que se opõe mais directamente à caminhada do homem em direcção a Deus é o pecado, o perseverar no pecado, enfim, a negação de Deus. O programado cancelamento de Deus do mundo do pensamento humano. A separação d’Ele de toda a actividade terrena do homem. A rejeição de Deus por parte do homem.

Na verdade, a salvação eterna do homem somente em Deus se encontra. A rejeição de Deus por parte do homem se se tornar definitiva, logicamente conduz à rejeição do homem por parte de Deus (Cfr. Matth. 7, 23; 10, 33), à condenação.

Poderá a Mãe, que deseja a salvação de todos os homens, com toda a força do seu amor que alimenta no Espírito Santo, poderá Ela ficar calada acerca daquilo que mina as próprias bases desta salvação? Não, não pode!

Por isso, a mensagem de Nossa Senhora de Fátima, tão maternal, se apresenta ao mesmo tempo tão forte e decidida. Até parece severa. É como se falasse João Baptista nas margens do rio Jordão. Exorta à penitencia. Adverte. Chama à oração. Recomenda o terço, o rosário.

E objecto do Seu desvelo são todos os homens da nossa época e, ao mesmo tempo, as sociedades, as nações e os povos. As sociedades ameaçadas pela apostasia, ameaçadas pela degradação moral. A derrocada da moralidade traz consigo a derrocada das sociedades.

Consagrar o mundo ao Coração Imaculado de Maria significa aproximar-nos, mediante a intercessão da Mãe, da própria Fonte da Vida, nascida no Gólgota. Este Manancial escorre ininterruptamente, dele brotando a redenção e a graça. Nele se realiza continuamente a reparação pelos pecados do mundo. Tal Manancial é sem cessar Fonte de vida nova e de santidade.

Consagrar o mundo ao Imaculado Coração da Mãe significa voltar de novo junto da Cruz do Filho. Mais quer dizer, ainda: consagrar este mundo ao Coração trespassado do Salvador, reconduzindo-o à própria fonte da Redenção. A Redenção é sempre maior do que o pecado do homem e do que “o pecado do mundo”. A força da Redenção supera infinitamente toda a espécie de mal, que está no homem e no mundo.

O Coração da Mãe está conscio disso, como nenhum outro coração em todo o cosmos, visível e invisível.

E para isso faz a chamada. Chama não somente à conversão. Chama-nos a que nos deixemos auxiliar por Ela, como Mãe, para voltarmos novamente à fonte da Redenção.

O mundo e o homem foram consagrados com a potência da Redenção. Foram confiados Àquele que é infinitamente Santo. Foram oferecidos e entregues ao próprio Amor, ao Amor misericordioso.

A Mãe de Cristo chama-nos e exorta-nos a unir-nos à Igreja do Deus vivo, nesta consagração do mundo, neste acto de entrega mediante o qual o mesmo mundo, a humanidade, as nações e todos e cada um dos homens são oferecidos ao Eterno Pai, envoltos com a virtude da Redenção de Cristo. São oferecidos no Coração do Redentor trespassado na Cruz.

João Paulo II baleado por Ali Agca em 1981
O Concílio Vaticano II, na Constituição dogmática sobre a Igreja “Lumen Gentium” e na Constituição pastoral sobre a Igreja no Mundo Contemporâneo “Gaudium et Spes” explicou amplamente as razões dos laços que unem a Igreja com o mundo de hoje. Ao mesmo tempo os seus ensinamentos sobre a presença especial de Maria no mistério de Cristo e da Igreja, maturaram no acto com que Paulo VI, ao chamar a Maria também Mãe da Igreja, indicava de maneira mais profunda o carácter da sua união com a mesma Igreja e da Sua solicitude pelo mundo, pela humanidade, por cada um dos homens e por todas as nações: a sua maternidade.

Deste modo, foi ainda mais aprofundada a compreensão do sentido da entrega, que a Igreja é chamada a fazer, recorrendo ao auxílio do Coração da Mãe de Cristo e nossa Mãe.

Hoje João Paulo II, sucessor de Pedro apresenta-se com ansiedade, a fazer a releitura, daquele chamamento materno à penitência e à conversão, daquele apelo ardente do Coração de Maria, que se fez ouvir aqui em Fátima, há sessenta e cinco anos. Sim, relê-o, com o coração amargurado, porque vê quantos homens, quantas sociedades e quantos cristãos foram indo em direcção oposta àquela que foi indicada pela mensagem de Fátima. O pecado adquiriu assim um forte direito de cidadania e a negação de Deus difundiu-se nas ideologias, nas concepções e nos programas humanos!

E precisamente por isso, o convite evangélico à penitência e à conversão, expresso com as palavras da Mãe, continua ainda actual. Mais actual mesmo do que há sessenta e cinco anos atrás. E até mais urgente.

Assim, se por um lado o coração se confrange, pelo sentido elo pecado do mundo, bem como pela série de ameaças que aumentam no mundo, por outro lado, o mesmo coração humano sente-se dilatar com a esperança, ao pôr em prática uma vez mais aquilo que os meus Predecessores já fizeram: entregar e confiar o mundo ao Coração da Mãe, confiar-Lhe especialmente aqueles povos, que, de modo particular, tenham necessidade disso.

Escreve o Autor do Apocalipse: “Vi depois a cidade santa, a nova Jerusalém, que descia do Céu, da presença de Deus, pronta como noiva adornada para o seu esposo. E, do trono, ouvi uma voz potente que dizia: Eis a morada de Deus entre os homens. Deus há-de morar entre eles: eles mesmos serão o Seu povo e Ele próprio – Deus-com-eles – será o Seu Deus” (Apoc. 21, 2ss).

A Igreja vive desta fé. Com tal fé caminha o Povo de Deus.

O Povo de Deus é peregrino pelos caminhos deste mundo na direcção escatológica. Está em peregrinação para a eterna Jerusalém, para a “morada de Deus entre os homens”. Lá, onde Deus “há-de enxugar-lhes dos olhos todas as lágrimas; a morte deixará de existir, e não mais haverá luto, nem clamor, nem fadiga. O que havia anteriormente desapareceu” (Cfr. Apoc. 21, 4).

Mas “o que havia anteriormente” ainda perdura. E é isso precisamente que constitui o espaço temporal da nossa peregrinação. Não podemos ignorá-lo. Isso permite-nos, no entanto reconhecer que graça imensa foi concedida ao homem quando no meio deste peregrinar, no horizonte da fé dos nossos tempos, se acendeu esse “Sinal grandioso: uma Mulher”!

Sim, verdadeiramente podemos repetir: “Abençoada sejas, filha, pelo Deus altíssimo, mais que todas as mulheres sobre a Terra!... Procedendo com rectidão, na presença do nosso Deus... Aliviaste o nosso abatimento”.

Verdadeiramente, Bendita sois Vós! Sim, aqui e em toda a Igreja, no coração de cada um dos homens e no mundo inteiro: sede bendita ó Maria, nossa Mãe dulcíssima!


(Publicado pela primeira vez em The Catholic Thing no sábado, 13 de Maio de 2017)

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