Wednesday 13 September 2017

Regresso às Aulas

David Warren
É preciso descrever o choque que senti ao ver que o livro “As Grandes Heresias”, de Hillaire Belloc, tinha sido reeditado. Há anos que procurava um exemplar em papel deste livro em todos os lugares do costume, como alfarrabistas e feiras de antiguidades. Reparei que, apesar de ainda constar do catálogo, tinha sido retirado fisicamente de pelo menos uma biblioteca e despachado de várias outras.

Não que isso me surpreendesse. Quanto mais importante é um livro para a nossa civilização, mais rapidamente desaparece das prateleiras. Recentemente, por exemplo, descobri que toda a secção de clássicos romanos e gregos foi eliminada da Biblioteca de Referência Central de Toronto, por falta de “interesse público”. E depois que as secções de clássicos de muitas bibliotecas universitárias tinha encolhido ao ponto de, agora, eu ter mais textos no meu pequeno apartamento.

Não é nada que nos preocupe porque sabemos que “tudo” foi preservado no éter electrónico e pode ser baixado por qualquer pesquisador insistente, normalmente de borla. Mas pouca gente se preocupa com os clássicos, menos ainda com os padres da Igreja e os acervos digitais são, pela sua própria natureza, precários. Mais fundamentalmente, como os “estudos” continuam a demonstrar, a retenção por parte de utilizadores de material lido em ecrãs de computador é praticamente zero.

Enfim, como dizem... E não me espanta que tenhamos multidões ignorantes a atacar as relíquias do passado, como as estátuas públicas. Torna-se muito mais fácil alimentar estas turbas porque, na ausência de materiais que não lêem nem respeitam, acreditarão em tudo o que se lhes contarem sobre o passado.

Voltando a Belloc, ele não era grego nem romano, mas a sua obra enquanto historiador é assinalável. Era um historiador popular, e não académico, mas não deixava de ter uma educação formidável e abrangente, não só por leitura mas também por ser viajado e abria caminhos por cada lado para que se voltava. E, como Belloc sabia perfeitamente, o leitor inteligente não se tem de restringir a Belloc. Somos livres de o contradizer mas, claro, isso requer paciência e esforço.

Sei bem qual foi o dia em que comecei a procurar um exemplar de “As Grandes Heresias”, porque foi no dia 12 de Setembro de 2001. Poderia ter sido na véspera, não fosse eu, então, um praticante de jornalismo diário e, por isso, tenha sido distraído dos interesses bibliográficos por “notícias de última hora”.

Parece que entre os meus compatriotas – pelo menos os que trabalhavam para os media – pensava-se que eu sabia alguma coisa sobre o Islão. Eu não me considerava um especialista, mas tendo em conta as circunstâncias, qualquer coisa servia e por isso, de repente, dei por mim com a liberdade de preencher as colunas que quisesse no jornal.

As pessoas queriam saber o que era esta coisa do “Islão” e o que é que se tinha passado enquanto dormiam. Fiz os possíveis para os informar – ter os factos correctos e essas coisas – e os editores que anteriormente me tinham desclassificado por ser “algum tipo de conservador”, até me estavam a agradecer.

Esta situação simpática manteve-se durante umas semanas, até que se descobriu que algumas das coisas que eu tinha escrito não eram, por assim dizer, “politicamente correctas”. A invasão americana do Afeganistão foi bem aceite, inicialmente, mas quando chegou ao Natal desse ano os “progressistas” tinham recuperado a sua garra e os apologistas liberais do Islão estavam em crescendo.

Hillaire Belloc
Desencorajaram-me especialmente de escrever sobre os 14 séculos de história por detrás deste incidente particular, que de tantas formas fazia lembrar o século VII. Mesmo a minha explicação inicial do significado da data 11 de Setembro – 1683 – se tinha perdido debaixo do burburinho dos “peritos” alternativos, que nunca tinham ouvido falar de tais coisas.
 
A vitória do exército cristão sob o comando do Rei João III Sobieski, da Polónia, que derrotou os otomanos às portas de Viena, tinha sido das datas mais famosas da história. Caso essa batalha tivesse sido vencida pelo “infiel turco”, como era conhecido em tempos na Europa, este ficaria em posição de se lançar Danúbio acima e atingir o coração da Europa Ocidental. Foram parados em Lepanto, tal como os antecessores tinham sido parados por Carlos Martel no meio de França. Grandes batalhas como estas mudam o rumo da história.

Para a Al Qaeda, abertamente dedicada à restauração de um califado mundial, este revés decisivo em Viena era a fonte de grande angústia. Ainda por cima não tinha sido a primeira tentativa. Há mais de um século que a cidade era um alvo, como antes tinha sido Constantinopla (hoje Istambul), com ataques anuais até à eventual queda em 1453.

Este longo “choque de civilizações” era de conhecimento geral, tanto no oriente islâmico como no ocidente cristão até há pouco tempo. Escrevendo em 1938, Belloc apanhou os seus leitores de surpresa ao sugerir que o choque não tinha chegado ao fim. Ele previa, corajosamente, que o Islão ia recuperar e que os ataques recomeçariam.

Para um leitor há 80 anos o Islão tinha sido inteiramente derrotado, às mãos da organização e da tecnologia ocidental. Mas foi precisamente porque o analisou enquanto fé – aliás, considerando-o uma heresia cristã – que Belloc pôde apreciar as suas forças. Mais, foi através da análise das outras grandes heresias que tinham dividido e viciado a Cristandade (ariana, albigense, protestante e modernista) que pôde antecipar o revivalismo islâmico.

A sua análise, não obstante ser extremamente “politicamente incorrecta”, é muito mais subtil que a caricatura habitual; cada uma das cinco grandes heresias que Belloc analisa era única à sua maneira, e a sua análise das suas interacções é de um extraordinário nível intelectual. Não podemos deixar que a sua prosa arrebatadora e acessível nos distraia da precisão do seu raciocínio.

Na verdade o livro é de tal forma pertinente que fiquei chocado de o ver novamente em circulação. O meu primeiro pensamento foi: “Como é que isto foi permitido?”. Porque o livro não envelheceu. Quem envelheceu fomos nós.


David Warren é o ex-director da revista Idler e é cronista no Ottowa Citizen. Tem uma larga experiência no próximo e extreme oriente. O seu blog pessoal chama-se Essays in Idelness.

(Publicado pela primeira vez na sexta-feira, 1 de Setembro de 2017 em The Catholic Thing)

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