Wednesday 11 October 2017

Do Ódio

James V. Schall S.J.
Tanto o Antigo como o Novo Testamento contêm passagens em que somos advertidos a odiar algo, como o mal, mas não o nosso irmão. Estamos familiarizados, talvez demasiado, com a expressão “odiar o pecado mas amar o pecador”. Este aforismo corre o risco de nos deixar com a impressão de que o nosso pecado é algo que flutua por aí, totalmente independente de nós, que nos mantemos puros como a neve virgem. Mas não existe pecado sem pecador. Mais, há pecadores que fazemos bem em evitar ou, pelo menos, tratar de forma cautelosa.

Quando Aristóteles trata a ira, que em si é uma coisa boa, fala do controlo, ou descontrolo de uma reacção apaixonada a algo que é perigoso ou errado. Normalmente exageramos. Mas não nos irarmos com coisas más é um vício. Algumas coisas devem despertar em nós a ira.

O ódio é uma resposta emocional ao nosso reconhecimento de que há algo de específico errado com o mundo. Diz-me o que odeias e dir-te-ei quem és. E se me dizes que nada odeias porque não há nada de errado no mundo, então fico com uma imagem ainda mais clara do que és – incuravelmente ingénuo.

Dito isto, estou interessado neste fenómeno relativamente novo a que se chama “discurso de ódio”. Poucas coisas são potencialmente mais perniciosas, sobretudo quando os governos e as instituições começam a defini-lo ou a fazer cumprir a sua proibição. O “discurso de ódio” e a liberdade de expressão estão claramente em conflito um com o outro. As pessoas que em tempos estavam interessadas em explorar as fronteiras da liberdade de expressão – ao ponto de se poder dizer praticamente qualquer coisa com impunidade – são as mesmas que agora, que controlam a cultura, querem suprimir qualquer expressão que não seja do seu agrado.

Mas afinal de contas de onde veio esta questão do “discurso de ódio”? A sua origem está no esforço, agora em larga medida bem-sucedido, de derrubar a estrutura moral da sociedade. De forma geral, esta transformação foi levada a cabo através do uso perspicaz da conversa de “direitos”. Aquilo a que antes se chamava, por razões racionais, uma desordem ou um vício começou por ser tolerado, depois finalmente um “direito”. Mal se torna um “direito” qualquer pessoa que lhe chama pecado ou mal torna-se automaticamente um caluniador e violador da dignidade e do orgulho humanos.

A linguagem tem um propósito. Serve para definir, e depois nomear, aquilo que designa realmente. Se começarmos a usar a mesma palavra para duas realidades diferentes, temos de passar a deduzir pelo contexto a realidade a que nos referimos. Se casamento passa a designar tanto a relação entre macho/fêmea e macho/macho, a realidade a que a palavra se refere não muda. Uma coisa não é a outra.

É aqui que entra em cena o “discurso de ódio”. Uma vez que a lei afirma agora que ambos os arranjos maritais são “iguais”, deixamos de ter a liberdade de afirmar que não o são. As pessoas sentem-se magoadas se lhes disserem que aquilo que fazem é, ou não é, um casamento. A afirmação de que não é ganha estatuto de desordem cívica que deve, em nome da prevenção da perturbação, ser proibida. Podemos dar por nós ostracizados ou até detidos por afirmar aquilo que é verdade e argumentar nesse sentido. A liberdade de expressão, que tinha como objectivo afirmar a verdade das coisas, já não é permitida. A verdade é uma ameaça à sociedade.

Uma nova revolução cultural
Quando se universaliza esta situação percebemos que temos de providenciar espaços onde as pessoas estão protegidas de ouvir sequer algo que questione a rectidão das suas escolhas ou da lei civil que agora reivindica jurisdição sobre todo o nosso discurso. Um dos aspectos mais odiosos das sociedades totalitárias era a montagem de postos de escuta, ou o hábito de levar as crianças a revelar o que os seus pais diziam em privado. Este mesmo fenómeno já está entre nós. Agora está disfarçada de forma de proteger as vítimas do ódio daqueles que se recusam a aceitar o novo regime de “direitos” que insiste que a sua lei é a única e mais alta lei da nação.

Ao discutir o direito, são Tomás de Aquino perguntava se devemos ter uma lei que proíba todos os vícios. Inicialmente parecia uma boa ideia, mas na verdade é uma ideia terrível. Aquino compreendia que dar tal poder ao Estado implicaria um conhecimento divino e acabaria com a liberdade de errar que nos permite estabelecer o nosso próprio destino.

São Tomás sabia que alguns vícios tinham de ser reprimidos, caso contrário estaríamos num estado de guerra constante. Mas dar poder ao Estado para nos livrar de todos os vícios equivaleria a dar-lhe poder absoluto, algo que demasiados políticos anseiam. Os cidadãos perderiam então esse espaço de liberdade e de inteligência em que podem tomar as suas próprias decisões. As “leis de ódio” radicam, em última análise, do esforço do Estado moderno para alterar a natureza humana.


James V. Schall, S.J., foi professor na Universidade de Georgetown durante mais de 35 anos e é um dos autores católicos mais prolíficos da América. O seus mais recentes livros são The Mind That Is CatholicThe Modern AgePolitical Philosophy and Revelation: A Catholic Reading, e Reasonable Pleasures

(Publicado pela primeira vez na segunda-feira, 9 de Outubro de 2017 em The Catholic Thing)

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